O evento climático extremo de cada dia

Mesmo considerando o agravamento das condições climáticas pelo efeito do El Niño, o fato é que o mundo tem apresentado expressivo aumento de eventos extremos
por Carlos Bocuhy
A sociedade humana vai ter que reconsiderar o emprego do termo “recorde” para os sucessivos eventos climáticos, que se intensificaram dramaticamente no ano passado e persistem em 2024. Entre fevereiro de 2023 e janeiro de 2024, a temperatura global do ar na superfície da Terra foi 1,52°C mais alta do que no período 1850-1900, de acordo com dados do Observatório Europeu Copernicus, publicados nesta quarta-feira, 7. 
“Este é um alerta gritante sobre a urgência de ações para limitar as mudanças climáticas”, disse Brian Hoskins, diretor do Instituto Grantham sobre Mudanças Climáticas do Imperial College London. “Este é um sinal muito importante e desastroso (…) , um alerta para dizer à humanidade que estamos nos aproximando do limite de 1,5 grau mais rápido do que o esperado”, disse Johan Rockström, do Instituto de Pesquisa de Impacto Climático de Potsdam (PIK), à agência AFP.
A Organização Meteorológica Mundial e a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA (NOAA) alertavam em janeiro que 2024 poderia quebrar o recorde de calor estabelecido no ano passado. Ou seja, teremos a mesma dinâmica de progressividade quanto à incidência de eventos extremos de 2023.
De acordo com a NOAA, há uma chance em três de que 2024 seja mais quente do que no ano passado, e uma chance de 99% de que ele fique entre os cinco anos mais quentes já registrados.
No mesmo dia 7, vários arquipélagos da Polinésia Francesa, no Pacífico, foram colocados em alerta vermelho para possível ciclone, incluindo o Taiti, à medida que a depressão tropical chamada NATs se aproximava. 
O Chile, do outro lado do Pacífico, seguia ardendo em chamas. Ventos fortes, árvores resinosas, calor e seca formaram a combinação que explodiu nos limites da área urbana de Valparaíso, registrando mais de uma centena de mortes. 
Mais ao norte, a Colômbia seguia com florestas consumidas pelo fogo.
No Hemisfério Norte, a Califórnia mergulhava em um ciclone com ventos de 260 km/hora, provocando fortes estragos na Costa Leste, de San Diego até São Francisco. 
Mesmo considerando o agravamento das condições climáticas pelo efeito do El Niño, que superaqueceu o Pacífico em 2023, o ano mais quente em milhares de anos, o fato é que o mundo tem apresentado expressivo aumento de eventos extremos, muito além do usual. Da Grécia à Líbia, do Canadá ao centro-oeste americano, da França e Itália à China, o ano de 2023 foi um marco em maior periodicidade e gravidade de eventos extremos.
Quando projetamos essa situação de + 1,48º C (índice de 2023), de aquecimento médio desde o início da era industrial para os possíveis +4º C até 2100 para o qual estão se preparando os franceses, o cenário passa a ser realmente assustador.  
Para completar o quadro, há enorme lacuna de informação nos gestores públicos, proporcionando ferramentas muito limitadas na tomada de decisões. Note-se a ampliação constante das áreas de risco, com aumentos sucessivos de pluviometria e intempestividade. 
É bom lembrar que tudo o que a humanidade construiu, há mais de 20 anos, pode revelar uma situação que hoje caracteriza exposição à riscos climáticos, pois este cenário não era previsto à época. 
Recentemente James Hansen, ex-Nasa, considerado o pai das mudanças climáticas, apoiado por um pool de renomados especialistas, publicou pesquisa sobre a susceptibilidade da Terra frente ao aquecimento global, cujos efeitos são mais intensos e impactantes do que se imaginava. Hansen também dá adeus ao limite pretendido de 1,5ºC até 2100 do Acordo de Paris, sinalizando nada menos do que 2ºC até 2050.
A França amargou fortes prejuízos com as recentes inundações em Pas-de-Calais, após um ano de 2023 extremamente quente, com ondas de calor que fizeram centenas de vítimas, principalmente pessoas idosas. As ondas de calor reconfiguraram as diretrizes de ação das assistências sociais estatais na França e Itália. 
Vários governos da Comunidade Europeia estão reagindo fortemente ao advento das mudanças climáticas, o que tem provocado a fúria de ruralistas. Especialmente a França colhe desgastes políticos ao pleitear que tudo o que for retirado da natureza deverá ser devolvido, o que significa claramente assumir, com políticas públicas, que os franceses atingiram o limite de alterações aceitáveis do território. “Lutar contra a artificialização da terra não é uma opção, é um imperativo”, afirma Christophe Béchu, ministro de Transição Ecológica e Coesão Territorial. 
Recebendo hoje fortes impactos climáticos, os Estados Unidos têm avançado em estudos de epidemiologia ambiental. Grandes áreas metropolitanas como St. Louis, Filadélfia, Chicago e Cincinnati viram aumentos notáveis nas taxas de mortalidade durante as ondas de calor. Durante o ano de 2023 o mesmo se deu no centro-oeste, especialmente nos estados do Sul, com temperaturas acima de 50ºC.
Não se deve subestimar os alertas de especialistas da Organização Panamericana de Saúde, como Carlos Corvalan, para a necessidade de incorporação, ao Acordo de Paris, de processos de conscientização e suporte à ecoansiedade, que vem crescendo principalmente entre os jovens, trazida pelo cenário desolador que retira esperanças de futuro saudável.    
O Copernicus também comunicou, no dia 7, que a superfície dos oceanos está superaquecendo, com novo recorde em janeiro, de temperatura média de 20,97°C. Este é o segundo mês mais quente de todos os meses, a 0,01°C do recorde anterior de agosto de 2023 (20,98°C).
Nesse sentido, há elementos mais que suficientes para que a humanidade abandone a ingenuidade de considerar como imprevisibilidade muitas das situações climáticas. Os norte-americanos têm uma cultura de defesa civil bastante robusta frente à eventos extremos como furacões, mas continuam a patinar na assistência à sociedade com relação às ondas de calor. Essa formação diferenciada das nações, inclusive em valores de prevenção (que são profundamente éticos), farão grande diferença na capacidade de resposta preventiva a eventos extremos.  
Por exemplo, os europeus internalizam mais facilmente elementos conceituais como o princípio da precaução, que no caso de agrotóxicos conseguiu banir dezenas e substâncias tóxicas à vida humana e ao ambiente, enquanto o Brasil e outros países continuam a fazer dessas substâncias tóxicas amplo e imprudente uso.   
A formação rápida de condições adversas, como ciclones extratropicais que irrompem em menos de 24 horas e mudam rapidamente sua direção, poderia justificar o uso do conceito “intempestivo” imprevisível na avaliação de seu potencial destrutivo e locais a serem atingidos. Porém, na maioria das situações, deve prevalecer o conceito definido pela ONU na metodologia de Alerta Precoce, que vem sendo desenvolvido após a constatação de que as mudanças climáticas vitimaram nada menos que 1,3 milhão de pessoas entre 1998 e 2017. 
Depois de 2021, quando o Caribe enfrentou a quarta temporada de furacões e a mais destruidora, com 21 tempestades incluindo sete furacões, a região foi escolhida para sediar o lançamento regional de um plano para garantir que todas as pessoas estejam protegidas por sistemas de alerta precoce até 2027. Não é só esta iniciativa bem-vinda que Bridgetown sedia, já que Barbados vêm defendendo fortemente a democratização dos fundos financeiros internacionais para socorrer países em desenvolvimento atingidos por eventos extremos, chegando a ponto de propor reformas estruturais para o Banco Mundial e FMI.
A cultura de prevenção deverá permitir instrumentos econômicos para que países em desenvolvimento promovam sua adaptação climática. Mas será preciso muita vontade política por parte dos gestores públicos, o que demandará o crescimento dos elementos de exigência e controle social.  

FONTE: Carta Capital