Por Leo Lince
A dívida pública federal, segundo anúncio feito pelas autoridades que administram o Tesouro, deverá atingir no curso deste ano um novo patamar histórico. Noves fora pontos e vírgulas, são necessários quinze caracteres para escrever a espantosa quantia, que ultrapassa o montante bestial de dois trilhões de reais.
A notícia, tão preocupante e ameaçadora, não mereceu manchete na primeira página e tampouco ensejou editoriais de alerta. Ao contrário. No espaço diminuto dos cadernos de economia, o tema é tratado com a ligeireza de uma rotina contábil. Mas há um fato sintomático: ele aparece sempre acolchoado por comentários tranqüilizadores. Tipo: “temos reservas volumosas”, “o perfil da dívida deve melhorar ainda mais”, “ela está sendo muito bem administrada”… Em suma, fiquem tranqüilos.
A razão para tal tratamento é simples. O Brasil, já faz tempo, é o paraíso dos especuladores. Os magnatas do capital financeiro têm o governo e a mídia grande a seu serviço. E, no regime que eles inventaram, o crescimento vertiginoso da dívida é o impulso que acelera a roleta do cassino. Daí o tabu. Todos são instados a aceitar com absoluta naturalidade a bola de neve do endividamento brutal.
O movimento da “Auditoria Cidadã da Dívida”, que acompanha de maneira qualificada a evolução da escalada vertiginosa, é um depositário de dados espantosos sobre esta questão crucial da política brasileira. Há, no sítio do movimento, um gráfico em forma de torta que é a mais completa explicação do descalabro. É de chorar.
Nas fatias da torta que expressam a execução do orçamento federal em 2011, praticamente a metade se refere aos gastos em: saúde, educação, segurança, defesa nacional, previdência, transportes, investimentos, custeio geral de todos os ministérios, enfim, tudo o que se possa imaginar de gastos públicos. A outra metade do orçamento, que quase empata com os demais gastos somados, foi consumida em juros e amortizações da dívida. Tem sido assim nos últimos anos e, projeção oficial, vai piorar em 2012. Um absurdo sem tamanho.
É doloroso, mas inevitável constatar. O Brasil, ao longo do tempo e cada vez mais, está sendo governado pela dívida. Basta ver a relação dela com os grandes desacertos da nossa agenda política. Entra governo e sai governo (Dilma, Lula, os dois Fernandos) e o grosso dos recursos orçamentários evapora na fornalha dos juros compostos. Apesar do enorme sacrifício regular e recorrente, o volume do que falta pagar só faz aumentar.
Para rolar a dívida e pagar os seus serviços, o governo corta gastos em saúde, educação, segurança. Entrega o patrimônio público nas privatizações. Sacrifica os direitos sociais dos trabalhadores. Confisca os aposentados, desmantela a seguridade social. Com a parte do leão do orçamento confiscada pela roleta do cassino financeiro, o poder público se amesquinha e trata a dívida como se ela estivesse acima da vida dos brasileiros.
Além de impagável, a dívida é injusta e ilegítima. O principal (a quantia originária emprestada não se sabe em que condições) já foi pago várias vezes. Na forma de juros compostos, ela continua crescendo como um saco sem fundos. Papéis sobre papéis, juros sobre juros, uma avalanche que só beneficia a usura dos banqueiros e a irresponsabilidade dos especuladores.
A dívida, no ponto a que chegou, não é mais um problema de mero cálculo econômico, ou de regras contratuais. Virou um problema político crucial e como tal deve ser tratado. Não é um problema técnico, mas expressão concentrada de tudo o que existe de pior no mundo de hoje. Da tirania do capital financeiro. Do domínio absolutista do privado sobre o público. Da soberania do mercado sobre a ordem social. Do desequilíbrio das contas públicas e do agravamento das desigualdades entre pessoas, nações e classes sociais.
Exigir uma auditoria e contra-restar a voracidade do sistema financeiro é a maneira de quebrar o círculo vicioso que pode nos arrastar para a tragédia grega. A crise geral do capitalismo, que espalha malefícios nos quatro cantos do mundo, deve nos servir de alerta. Só teremos desenvolvimento de verdade – sustentável, soberano e solidário – quando nos livrarmos do Minotauro da dívida.
Léo Lince é sociólogo
Fonte: Correio da Cidadania