POR FREI MARCOS SASSATELLI
No dia 2 do mês corrente, bem cedo, o meu olhar fixou-se na seguinte manchete de jornal: “Morte e angústia à espera de UTI”. “Pacientes sofrem por dias para conseguir vaga nas redes pública e conveniada ao SUS” (O Popular, 02/06/12, 1ª página). Depois da manchete, um resumo da reportagem (publicada, na íntegra, na página 4 do mesmo jornal), diz: “A recém-nascida Sofia Lemes, com pneumonia, teve de aguardar quatro dias para conseguir ocupar uma vaga em UTI de Goiânia. Demorou, mas conseguiu. O universitário Rubens de Araujo não teve a mesma sorte. Apesar de um mandado judicial (repare: um mandado judicial) esperou por cinco dias. Não suportou a demora”. E ainda: no dia 1º do mesmo mês, nas unidades de saúde da prefeitura (Cais e Ciams), “outros 13 pacientes graves estavam na fila por uma vaga”. Esta situação de iniqüidade nos deixa a todos profundamente indignados.
No caso de Rubens de Araujo, 44 anos, acadêmico de biologia da UFG, o advogado Renato Beltrão, a pedido da família, entrou com mandado de segurança para conseguir a internação em UTI. “A justiça – diz o advogado – foi rápida, determinando a internação dele em UTI, mas a Secretaria Municipal de Saúde descumpriu a ordem judicial” (Ib., p. 4). Rubens morreu no Ciams do Setor Urias Magalhães – onde estava internado há cinco dias – de insuficiência hepática, decorrente de uma cirrose.
Ao que me consta, quando uma categoria de trabalhadores(as) – da educação, da saúde ou outra – descumpre uma ordem judicial (uma liminar), os responsáveis são presos e processados. Pergunto, então: Por que os responsáveis (da Secretaria Municipal da Saúde – SMS) pelo descumprimento da ordem judicial em favor do estudante Rubens não foram presos e processados? Não somos todos iguais perante a lei?
A família de Rubens – diz ainda o advogado – “indignada com o que considera negligência e descaso (mesmo havendo uma ordem judicial) vai ingressar com uma ação contra o município de Goiânia de indenização por danos morais” (Ib.). Diante de tanta irresponsabilidade, a família tem todo o direito de processar a SMS. Infelizmente, porém, nem todas as famílias têm condições de fazer isso.
Vergonha, descalabro. No SUS, a demora no atendimento aos doentes tornou-se estrutural e crônica, mesmo em casos de urgência e emergência. Nesses casos, os crimes praticados pelo Poder Público são crimes de omissão de socorro. Ninguém, porém, é preso, julgado e condenado por causa desses crimes. Reina a total impunidade. Parece que a sociedade se acostumou com essa realidade desumana e antiética. Temos um SUS que na prática (embora na teoria seja um dos melhores planos de saúde pública) é criminoso e mata os pobres. E quando digo “os pobres”, não entendo somente aqueles e aquelas que vivem na extrema pobreza, mas a grande maioria dos trabalhadores(as) que ganham salários indignos. O responsável dessa situação de descalabro é o Poder Público, municipal, estadual e federal.
Não venham os governantes com desculpas esfarrapadas, dizendo que faltam verbas, que faltam medicamentos, que o atraso na compra dos mesmos é devido à burocracia, que a situação se agravou, que vêm muitas pessoas do interior e não sei mais o quê. Na realidade, trata-se somente de uma questão de opção política. Chega de enganação ao povo! O dinheiro dos cofres públicos (que é dinheiro dos impostos e, portanto, do povo) deve ser usado prioritariamente para salvar a vida do povo (e não para práticas de corrupção e parasitagem, despejando o dinheiro público nas “cachoeiras da vida”).
No atendimento pelo SUS, nos casos de urgência e emergência, se não tiver vaga em UTI da rede de hospitais públicos ou conveniados (o que não aconteceria se houvesse “outra” política), o Poder Público é legal e moralmente obrigado a pagar (com dinheiro dos cofres públicos, que é dinheiro do povo) a internação das pessoas gravemente enfermas em UTI da rede de hospitais particulares e a adquirir os medicamentos necessários. Repito: é obrigação do Poder Público e não favor ou “pacote de bondades”.
Goiânia, por exemplo, é um centro médico bastante desenvolvido e, para quem pode pagar, as vagas em UTI sempre existem. Os que têm dinheiro usufruem das benesses de um tratamento de qualidade, que – segundo a Constituição Federal – deveria ser para todos(as). O SUS não pode dizer que não existem vagas em UTI. Só não existem para os pobres.
Infelizmente, o Poder Público – no lugar de assumir suas responsabilidades constitucionais e éticas – prefere lavar as mãos e terceirizar (leia-se: privatizar, de maneira disfarçada) a saúde. Não podemos, sobretudo os trabalhadores(as), permitir que isso aconteça e que empresas privadas – mesmo chamadas de Organizações Sociais (OSs) – se enriqueçam às custas do sofrimento do povo. A saúde, que é um serviço essencial, deve ser pública
Enfim, faço um apelo aos advogados/as – que, sensíveis à causa da justiça e dos direitos humanos, querem dedicar parte de seu tempo à prática do voluntariado – para que assumam gratuitamente (a gratuidade é um grande valor humano) a defesa das vítimas de casos de omissão de socorro no SUS (como o caso citado pelo O Popular), processando o Poder Publico e exigindo a devida indenização para os familiares da pessoa falecida.
Diante dessa realidade, “é hora de nos despojarmos do comodismo, não deixar que a desilusão nos paralise e nos impeça de buscar novas formas de denúncia e de transformação destas estruturas de manutenção da exploração e da pobreza” (Pastorais Sociais e outros Organismos da CNBB. Eleições municipais 2012: Cidadania para a Democracia. Brasília-DF, fevereiro 2012, p. 14).
(Há poucos dias, escrevi o artigo: Irmã Katherine Marie: a “Irmã dos SUS”, vítima do próprio SUS. Leia o artigo nos links:
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=67487 e outros).
Frei Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP), é professor de Filosofia da UFG (aposentado). E-mail: mpsassatelli(0)uol.com.br