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O povo “à jusante” de Belo Monte

D. Erwin Kräutler

“”Verdade é que um rolo compressor está passando por cima de todos nós. A promessa que Lula pessoalmente me deu no dia 22 de julho de 2009, segurando-me no braço e afirmando “Não vou empurrar este projeto goela abaixo de quem quer que seja” foi pura mentira. Falou assim para “acalmar” o bispo e livrar-se deste incômodo religioso que recebeu em audiência. O governo empurra sim Belo Monte goela abaixo!”, escreve D. Erwin Kräutler, bispo do Xingu, narrando a visita pastoral, realizada no último mês de março, às comunidades do interior de Porto de Moz.

Segundo ele,”o pessoal da Norte Energia é para lá de arrogante. Se o colono não desocupa o seu sitio, a Justiça dá ordem de despejo e manda a polícia em cima do pobre, pois a Norte Energia considera toda a região propriedade sua e os moradores, que lá vivem desde os tempos do bisavô, invasores”.

Eis o artigo.

Há doze dias vivo a bordo do barco “Teresinha”. Estou visitando as comunidades do interior de Porto de Moz. Não há telefone e muito menos existe acesso à Internet. Faz um bem enorme ficar de vez em quando sem essas comodidades. Tem-se a impressão de estar em outro planeta. Mas as pessoas queridas que encontro ao longo da viagem e que há décadas conheço e amo são a prova de que continuo no mesmo planeta Terra e na “minha terra” que é o Xingu. A primeira vez que singrei as águas dos rios, furos e lagos de Porto de Moz foi em janeiro de 1968. Lembro os antepassados do povo que agora me abraça. Revejo em muitos rostos os traços de seus avós. Antigamente as famílias vieram a remo. Hoje um motor “rabeta” diminui mais o tempo da viagem. Mesmo assim têm que enfrentar, às vezes por horas, um sol escaldante ou chuvas torrenciais.

O encontro com o bispo segue sempre o mesmo esquema. Começa com abraços, cantos, poesias, salva de palmas. Um ambiente festivo e descontraído, sem formalidades, etiquetas e protocolos. Sinto-me em casa. “Vós todos sois irmãos” (Mt 23,8). Também o bispo é irmão! É nestas ocasiões que mais me realizo como pastor, no meio dessa gente que amo e que – eu sei disso – também me ama. Todo mundo se conhece. Essa é uma das mais belas características das Comunidades Eclesiais de Base. Não há estranhos.

Faço questão de primeiro ouvir o povo, escutar a sua história, ser informado a respeito de suas esperanças e angústias, avanços e derrotas. São coisas alegres, estórias pitorescas, “causos” que partilham comigo, mas também assuntos tristes, experiências dolorosas. Sempre me admiro que esse povo, apesar de viver uma vida dura e penosa, nunca perdeu a alegria. Sabe sorrir! Aliás, que sorriso límpido, espontâneo, cativante! Nada postiço, só para agradar o bispo.

Falam do salão comunitário que conseguiram construir, da capela que pintaram, das reuniões semanais, do culto dominical e da novena que não deixaram de celebrar. Revelam também problemas familiares. Alguém denuncia a invasão de geleiras para roubar o peixe, até na época da piracema. “Vem com malhadeiras de malha tão fina que nem alma passa”. Outro relata com orgulho experiências que fazem com as Reservas Extrativistas comunitárias, mas reclama do IBAMA que cai em cima deles por causa de uma tartaruga que pegam, enquanto faz vistas grossas diante das geleiras, do escandaloso roubo de madeira, de desmatamentos e outras agressões ao meio-ambiente, como por exemplo Belo Monte. “Aí dá até todas as licenças para acabar com o nosso Xingu”.

Passo, em seguida, do papel de ouvinte para entrevistado. Jovens e adultos me bombardeiam com perguntas de todo tipo. Assuntos internos da comunidade, do setor, da paróquia, mas também da “conjuntura” econômica e política. Em todas as comunidades, a pergunta principal é sobre Belo Monte. Querem saber detalhes, já que o bispo vem de Altamira, do centro do monstruoso projeto.

“Bispo, será que ainda tem jeito de impedir essa desgraça? Ouvimos falar que estão tocando Belo Monte a todo vapor. Dizem que o governo já gastou muito dinheiro e assim certamente não dá mais para parar a obra. Que o Sr. acha?”
O que realmente devo responder a esse povo? Decido “abrir o verbo”, sem meias-palavras:

“Verdade é que um rolo compressor está passando por cima de todos nós. A promessa que Lula pessoalmente me deu no dia 22 de julho de 2009, segurando-me no braço e afirmando “Não vou empurrar este projeto goela abaixo de quem quer que seja” foi pura mentira. Falou assim para “acalmar” o bispo e livrar-se deste incômodo religioso que recebeu em audiência. O governo empurra sim Belo Monte goela abaixo! E Altamira virou um caos em todos os sentidos. Nada do prometido saneamento básico, uma das condicionantes do IBAMA para dar licença para iniciar a obra! Não tem leito nos hospitais, não há vaga nas escolas, homicídios na ordem do dia, prostituição a céu aberto no centro da cidade. Os aluguéis de uma casa simples pularam de 300 para 2.000 Reais. Os preços de alimentos triplicaram. O transito é uma calamidade. Acidentes a toda hora”.

“O que mais vou dizer a vocês? Fui várias vezes “ver” o canteiro de obras, quer dizer, queria ver, porque não me deixaram entrar, mas vi de longe os estragos já irrecuperáveis. Rezei missa com as comunidades ameaçadas de despejo. Os grandes fazendeiros receberam indenizações, mas o coitado do pequeno produtor e agricultor não sabe o que vai ser dele e de sua família. Arrasaram com uma vila inteira: Santo Antônio. O pessoal da Norte Energia é para lá de arrogante. Se o colono não desocupa o seu sitio, a Justiça dá ordem de despejo e manda a polícia em cima do pobre, pois a Norte Energia considera toda a região propriedade sua e os moradores, que lá vivem desde os tempos do bisavô, invasores.”

“E para onde vai toda essa gente?”

“Pois também eu quero saber. Prometem solução, mas nunca dizem que tipo de solução, onde, quando, de que jeito.”

“E o povo de Altamira?”

“Muita gente está com o coração despedaçado. Até comerciantes e empresários que antes colaram em seus carros adesivos “Queremos Belo Monte” andam hoje cabisbaixos. Quem pode contra a fúria da “Norte Energia”? Aliás “Norte Energia” é o próprio Governo, antes Lula, agora Dilma. Nunca houve diálogo com o povo daqui, nem com índios, nem com ribeirinhos, nem com o povo da cidade. O governo traiu o povo que o elegeu e ri-se de quem defende os índios, os ribeirinhos, os pobres atingidos pela barragem. Fala de preço a ser pago pelo progresso. Só que esse preço sacrifica o nosso povo e não as famílias de políticos em Brasília. Um terço de Altamira vai para o fundo e o resto vai ficar à margem de um lago podre, criador de carapanã e causador de dengue e malária”.

“E os índios? É verdade que estão a favor da barragem?”

“Não digo que estão a favor da barragem, estão a favor dos presentes que recebem. Muitos deles que antes viviam abandonados pelo governo e entregues à própria sorte, hoje têm todas as contas pagas no comércio, recebem cestas básicas e combustível e outros benefícios. O governo que negou aos índios se manifestarem em oitivas previstas em lei, agora se esmera em entupi-los de dinheiro para fechar-lhes a boca. Antigamente enganou-se os índios com espelhos e bugigangas, hoje milhões de reais são injetados nas aldeias para paralisar a luta indígena e cooptar as lideranças. O preço é muito alto. Não se mata mais índio a ferro e fogo. O dinheiro farto é a punhalada traiçoeira no coração das culturas indígenas e de sua organização comunitária. E o governo afirma em alto e bom som que nenhuma aldeia será alagada. Aldeia não será alagada, sim! O que a Norte Energia faz, é cortar a água aos índios e ribeirinhos da Grande Volta do Xingu. E o povo da Volta Grande vive e sobrevive da pesca. E tem mais. O que vai acontecer com uma aldeia a poucos quilômetros do canteiro de obras onde trabalham milhares de homens? É muito triste! Dá dó!”

“E nós? Como é que nós vamos ficar, nós que moramos abaixo da futura barragem? Ou, como essa gente de Brasília fala, ‘à jusante’?”

“Bem, vocês sabem o que acontece se fazem uma tapagem no igarapé. Acima da tapagem, o que acontece?”
“O igarapé alaga a terra firme!”

“E abaixo da tapagem?”

“Ora, o igarapé seca!”

“Pois é. O Xingu abaixo da barragem vai baixar de nível e os igarapés e afluentes também. Há trechos em que o Amazonas vai entrar no leito do Xingu e nossos peixes que não se dão com a água barrenta do Amazonas vão morrer.”

Por um bom tempo o povo ficou apenas me olhando e não me fez mais nenhuma pergunta. Também a conversa já passou da hora. Já é hora de almoço.

A celebração eucarística está programada para as 14 horas. A liturgia está preparada, os cantos escolhidos e as leituras ensaiadas. “Vai ter crisma” avisa-me uma catequista “e a turma precisa ainda se confessar com o bispo”. Nada de vexame! Aqui ninguém é escravo do relógio. Terminada a confissão, outra catequista me informa: “As meninas precisam ainda se empiriquitar”. Já são lindas por natureza, de traços indígenas ou ascendência negra, mas querem realçar ainda mais sua beleza. Há também senhoras entre as crismandas, com crianças pequenas. Uma me pergunta se pode, mesmo gestante, se crismar. “Sem dúvida, querida! O Espírito Santo descerá sobre você e a criança debaixo de seu coração!”
Apresento os crismandos a toda a comunidade chamando cada um(a) por seu nome: “Senhor, aqui estou!” é a resposta às vezes bem forte, outras vezes um pouco tímida, acanhada. Depois de dois anos de preparação para o sacramento, sabem que a resposta que recorda o que o Profeta Isaias falou quando Deus o chamou: “Eis-me aqui, envia-me” (Is 6,8) significa o compromisso publicamente assumido com a comunidade. No rito da imposição das mãos convido também catequistas e dirigentes para realizar comigo este gesto que remonta ao tempo dos apóstolos quando enviaram discípulos para anunciar e testemunhar o Evangelho (cf. At 13,1-4). Durante a unção com o santo crisma a madrinha ou o padrinho coloca “a mão com que assina o nome” no ombro da afilhada ou do afilhado selando com este gesto uma aliança: “Você pode contar comigo, não apenas hoje, mas pelo resto da vida!”. Estou convicto de que muitos padrinhos e madrinhas realmente assumem um compromisso sério e não estão aí como personagens mudas que entram em cena só para figurar. Dou-me conta disso especialmente quando, depois da unção, a crismada ou o crismado pede a bênção de sua madrinha, de seu padrinho. É um momento comovedor. Graças a Deus, o nosso povo não tem vergonha de mostrar suas emoções.

O mais lindo nestas viagens, além do encontro com esse povo bom e simples, é conviver tão de perto com a criação de Deus. Doze dias se foram, desde que partimos de Altamira. A última noite da viagem passamos ancorados na boca do Rio Maxipanã, afluente do Xingu abaixo de Souzel. Chegamos ao entardecer. Cedo atei a minha rede. Noite calma e tranquila, sem carapanã. Acostumei-me a acordar antes do sol raiar e assim desfruto sempre do privilégio de ver o dia nascer.
Como é sublime essa hora matutina. As estrelas deixam de cintilar. As trevas se dissipam. O céu no oriente começa a alvorecer, mas a escuridão ainda predomina. A rubra claridade da aurora enfrenta as trevas. De minuto em minuto a cor purpúrea é mais suavizada com tonalidades acajus e alaranjadas.

O rio ainda dorme. Exala uma bruma esbranquiçada que cobre, como se fosse um véu, a várzea.

Na terra-firme da outra margem guaribas já uivam seu louvor matinal ao Criador. Cada bando tem o seu “capelão”. É barbudo. Aqui o chamam de “gorgo”. Dizem que as fêmeas permanecem em piedoso silêncio enquanto os gorgos bradam seu salmo milenar. De repente param, como se Deus tivesse lhes passado uma ordem. Silêncio.

Agora se ouve melhor o canto dos pássaros com suas melódicas modulações, umas mais graves e fortes, outras mais contidas e suaves. Chilreiam suas cantigas, também milenares. Um é apelidado de “peito de aço” porque seu assobio é tão forte que assusta a quem estiver por perto. Ouve-se o arrulho esperançoso das rolinhas. Pombinhas selvagens gorjeiam animadas sua saudação ao novo dia. Lá longe uma voz solitária e monótona de uma ave que não sei identificar. Sua cantiga parece com o cuco, aquele pássaro dos Alpes que canta só na primavera. Falam mal dele. Dizem que bota seus ovos em ninho alheio para outra mãe chocar. Não assume a responsabilidade por seus filhotes. Em vez de ficar preso ao ninho, imóvel em cima de ovos, prefere curtir uma vida de vagabundo e voar desimpedido para cantar aqui e acolá.

O sol já alcançou altura, mas ainda é um disco pálido por trás da neblina. Cada vez mais impõe o seu fulgor. Enquanto o primeiro raio não rasgar a cortina, pode-se vê-lo a olho nu. A bruma rapidamente se desvanece e o rio, a selva e os campos à sua margem, respiram o ar límpido de uma manhã ensolarada. O Maxipanã revela agora sua cor clara, contrastando com o verde-esmeralda do Xingu e a floresta ostenta sua fascinante exuberância nas múltiplas matizes de seu verdor.

Que maravilha! “Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia transmite a mensagem a outro dia, e a noite conta a notícia a outra noite” (Sl 18,2-3).

Pena que os homens não se deixam mais encantar pela obra de Deus. Vedaram seus olhos e taparam o ouvido. Não enxergam mais as flores, nem ouvem mais o canto dos passarinhos. O sol e lua não nascem, nem se deitam mais! É a rotação do planeta Terra, pronto! Contemplar a natureza é perder tempo e dinheiro. Tudo é matéria prima para fazer negócios. Tudo vira mercadoria a ser explorada, ser comprada e vendida, exportada e consumida! Por isso os homens derrubam e queimam a floresta, represam e sacrificam os rios, assassinam os animais da mata, envenenam as plantas e os pássaros.

Os homens perderam o coração. Tornaram-se insensíveis, brutos, cruéis. Decidiram matar a vida.

Boca do Rio Maxipanã, São Pedro, março de 2012

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