Em 23 de maio de 2014, o governo federal editou o Decreto n. 8.243, que instituiu a Política Nacional de Participação Social – PNPS, “com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”.
O Decreto foi bastante criticado por dois motivos: primeiro, pelo fato das iniciativas nele contidas não terem sido submetidas ao crivo do processo constitucional de elaboração das leis, já que instituído por Decreto, sendo, portanto, um ato exclusivo do Poder Executivo; e, segundo, por ter supostamente suprimido as instâncias institucionalizadas da democracia participativa, notadamente, a Câmara dos Deputados.
Parece-me que as críticas embora tenham algum sentido – até porque me arrepia um pouco a palavra “Decreto” – não têm respaldo jurídico, pois o governo, na forma de administrar o país, pode decidir como quer dialogar diretamente com a sociedade e um mecanismo de diálogo não pode ser visto como contrário à democracia, sendo certo, de todo modo, que qualquer atuação concreta, de natureza regulatória, ou seja, que dependa de lei, deve seguir a via procedimental adequada, constitucionalmente assegurada.
A questão relevante, portanto, não é esta de cunho formal, mas da própria eficácia da medida e, principalmente, dos riscos que traz ao atribuir à vontade da “sociedade civil” a manifestação de alguns segmentos da sociedade, sabendo-se que muitas das entidades “convidadas” a participar do diálogo podem possuir ligações políticas com o governo. Assim, o “diálogo” serviria apenas para criar uma legitimação de uma pretensa vontade popular para a execução de iniciativas que seriam, na verdade, do próprio governo ou, pior, de setores determinados, usando-se a resolução do “diálogo” como forma de mascarar a influência do poder instituído, com intenções nem sempre totalmente reveladas, e de pressão sobre a opinião pública e o Congresso Nacional.
Há riscos, portanto, para uma efetiva participação democrática, ainda que o propósito seja ampliar as formas da intervenção popular nesse processo.
Mas, principalmente, há graves riscos para a classe trabalhadora. Neste último aspecto, é importante lembrar que os organismos institucionalizados têm como função fazer atuar os valores consagrados na Constituição de 1988, que embora tenha mantido o modelo de produção capitalista, conferiu à livre iniciativa um valor social, atribuiu à propriedade uma função social, assim como previu que a economia se desenvolva com base nos ditames da justiça social. Também na Constituição os direitos sociais, notadamente, os direitos dos trabalhadores, foram alçados a direitos fundamentais, estando amparados pelo princípio do não-retrocesso, vez que insertos ainda no conceito de cláusulas pétreas.
A grande função administrativa do governo nesta área, portanto, é a de garantir o pleno funcionamento das instituições estatais voltadas à efetivação desses direitos.
Parece-me um grave desvio de finalidade, com séria perspectiva de eliminação de responsabilidade, pondo mesmo em risco o projeto constitucional, transferir para instâncias de diálogo a deliberação acerca da eficácia de direitos históricos, que foram integrados, à custa de muitas lutas, ao patrimônio da classe trabalhadora. Soa falso, ou, no mínimo frágil, o argumento de que se está tentando incentivar a participação popular nas vias de deliberação do Estado quanto a esses direitos, notadamente quando se sabe do descaso com que foram tratadas as instituições responsáveis pela fiscalização e aplicação dos direitos sociais nas últimas duas décadas.
Veja-se, por exemplo, que na perspectiva específica dos direitos trabalhistas, seguindo a linha do Decreto n. 8.243, o governo federal está “patrocinando” um projeto de lei que institui o Sistema Único do Trabalho – SUT. Ocorre que o SUT, sob o pretexto de aumentar a participação dos trabalhadores – e dos empregadores – nas deliberações sobre as relações de trabalho, acaba por fragilizar a eficácia da legislação trabalhista ao ser posta em mesa de debate, quando o que se deveria esperar do governo é que fizesse cumprir o projeto constitucional de essencialidade dos direitos trabalhistas.
O papel obrigatório do governo, diante do compromisso que a sociedade civil organizada assumiu, na Constituinte de 1987, perante à classe trabalhadora, é o de deixar claro aos setores econômicos que a justiça social, que parte da eficácia dos direitos trabalhistas e previdenciários, constitui a pedra fundamental do modelo de produção brasileiro. E, dentro dessa perspectiva, cumpre ao governo federal, isto sim, prestigiar as instituições voltadas à efetivação dos direitos trabalhistas, tais como o Ministério do Trabalho e Emprego, no setor específico da fiscalização do trabalho, o Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho, e não se dedicar à criação de uma estrutura cara e complexa como o SUT, na qual o papel dessas instituições é mitigado, abrindo-se espaço para a formalização de um pretenso diálogo entre o capital e o trabalho sem a fixação do pressuposto necessário da relevância da eficácia dos direitos trabalhistas e do encaminhamento constitucional da linha ascendente desses direitos, indo, aliás, em direção contrária, ao se dar prioridade às negociações coletivas – sem qualquer limitação – tanto na criação de direitos quanto na solução de conflitos e mais ainda autorizando, expressamente, a instituição de formas precárias de relações de trabalho, revitalizando, inclusive, a malsinada expressão “intermediação de mão-de-obra”.
O SUT, portanto, sob a aparência de favorecer a democracia, serve, isto sim, como fundamento para o sucateamento das entidades referidas, contribuindo para a precarização das relações de trabalho.
Não é por outra razão que as instituições em questão, cuja função é assegurar a eficácia dos direitos trabalhistas, posicionaram-se contra esse projeto de lei, que configura, de fato, um grave atentado à classe trabalhadora.
Por oportuno, cabe reproduzir as manifestações referidas: o Manifesto pela valorização da auditoria fiscal do trabalho e contra o Sistema Único do Trabalho e a “Nota pública” da Associação Nacional do Procuradores do Trabalho (ANPT).
*Fonte: artigo escrito por Jorge Luiz Souto Maior, juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), e publicado no blog da Boitempo.